Dentre as penumbras de um supermercado abandonado, uma família – cujos membros não sabemos o nome até a subida dos créditos finais – busca por suprimentos, se esquivando pelas esquinas de uma cidade deserta e sitiada. Há um cuidado extremo por parte deles (os pais e seus três filhos) em evitar fazer qualquer espécie de barulho. A comunicação é feita através da linguagem de sinais. O temor em produzir algum ruído os obrigam a andar descalços como a também polvilhar as trilhas que mais utilizam com uma espécie de pó branco para abafar o som de seus passos. Quando o Pai (John Krasinski, de Detroit em Rebelião e da série The Office) faz um esforço hercúleo para impedir que um brinquedo caía no chão nos leva a compreender o quão grave é o barulho nas atuais circunstâncias, mesmo desconhecendo a real motivação para tal comportamento.
Mas isso não dura muito tempo. No caminho de volta para casa, ainda num descuido com o brinquedo, o Caçula (Cade Woodward) acaba sendo atacado violentamente por uma criatura que apenas vemos de relance. A única certeza aqui é o ataque feroz e mortal que ela promove, não oferecendo nenhuma brecha para que sua presa possa se defender, dando razão para toda a precaução com que os sobreviventes passaram a viver agora. Os registros anotados pelo Pai da família deixam claro a dimensão global da situação pela qual eles enfrentam. Enquanto recortes de jornais relatam a calamidade de outras cidades pelo mundo, anotações pessoais do Pai mostram que ele vem estudando os animais em seus hábitos e estimando a quantidade existente deles próxima a sua propriedade. Através desse estudo e dessas observações que chegamos à principal característica delas: a sua incapacidade de enxergar – vivem, se locomovem e atacam usando apenas a sua aguçada capacidade auditiva.
Para um filme que carrega a palavra “silencioso” no título, não mais natural que a produção explore o silêncio em sua narrativa. Algo que é muito bem explorado pelo seu diretor, o próprio John Krasinski que vive o protagonista. É manipulando o som que se constrói a tensão, por exemplo. Seja na ausência dele ou na trilha sonora de personalidade forte composta por Marco Beltrami (compositor nos filmes Guerra Mundial Z, Águas Rasas e Logan) que realiza, em suas músicas, um contraponto contrastante com o silêncio no longa. Mas, mais do que isso, o aspecto sonoro de Um Lugar Silencioso ainda consegue oferecer detalhes e pistas sobre os seus personagens. Durante a sua primeira metade podemos observar dois tipos de ausência do som. Na maioria das cenas é utilizado o silêncio parcial, onde nenhum som diegético (o som criado por tudo e por todos que compõem a cena) pode ser ouvido; apenas um ruído, um chiado grave e discreto, é perceptível. Em outros momentos mais específicos, no entanto, há o silêncio absoluto em que nada é audível. Conforme isso passa a ocorrer de forma recorrente com um único personagem, podemos desconfiar que a linguagem de sinais não é uma opção, mas sim a única forma de comunicação para um dos membros da família. Ou seja, um deles é deficiente auditivo, fato confirmado pelas inúmeras tentativas do Pai em desenvolver um aparelho de audição funcional.
Enquanto aspectos técnicos do filme ajudam a construir os seus personagens, a direção de arte oferece várias pistas através de objetos secundários, aparentemente sem lógica numa primeira observação, mas que se revelarão importantes nos momentos cruciais da história. A composição do mundo que essa família já habita por mais de um ano (especificamente 473 dias) é outro aspecto formidável de Um Lugar Silencioso. A fazenda em que boa parte da ação se desenvolve é um ótimo exemplo disso. O seu ambiente (tanto interno quanto externo) é rico em detalhes. Se a primeira impressão causa uma noção de excesso nessa composição, o decorrer da narrativa trata de dar uma razão de ser e de existir de cada um deles. É o caso das luzes externas que é mais um método eficiente de comunicação do que de iluminação.
Com o seu universo do filme sendo construído meticulosamente, a gravidez da Mãe (Emily Blunt, de A Garota no Trem e Sicario: Terra de Ninguém) nos dá um grave problema de antemão. Com o perigo constante em que eles vivem, como será possível realizar um parto todo em silêncio naquele ambiente? Algo totalmente difícil de se planejar com antecedência e ainda mais complicado de se realizar quando ele pretende ocorrer antes da hora e justamente quando ela está sozinha em casa. O Pai saiu para ensinar as habilidades práticas de sobrevivência com o Filho receoso num rio próximo na região, enquanto a Filha (Millicent Simmonds, de Sem Fôlego) deixa a casa sofrendo o que ela acha ser uma rejeição por parte do pai. Reflexo da culpa que ela acredita ter na ocasião da morte do caçula.
A comunhão de pai e Filho (Noah Jipe, de Extraordinário e Suburbicon: Bem-vindo ao Paraíso) junto a natureza é um dos raros momentos de libertação e tranquilidade que Um Lugar Silencioso reserva aos seus personagens. O local da cachoeira, barulhento pela queda d’água, permite o reencontro dos personagens com sua própria humanidade. Ali, eles podem conversar, gritar, extravasar sem maiores preocupações, pois suas vozes não se sobressaem ao som da cascata. E é justamente esse momento de paz e tranquilidade que precede o inferno pelo qual a família enfrentará ao ter sua casa invadida pela criatura.
Atraída pelos gemidos da Mãe (que além de ter a placenta estourada, ela ainda teve a infelicidade de ferir o pé em um prego), a criatura fica muito próxima de matá-la. São angustiantes os momentos que separam a ameaça que Mãe sofre do animal e a solução encontrada pelo trabalho conjunto de Pai e Filho quando percebem o perigo ao retornarem para casa. Com o terreno de seu cenário totalmente explorado e o espectador muito bem familiarizado com aquela localidade, o roteiro escrito por John Krasinski, Bryan Woods e Scott Beck não poupa esforços ao concentrar uma incrível sucessão de momentos de tensão, expondo seus personagens aos mais variados conflitos, assim como não teme em sacrificar quem for preciso para validar ainda mais a fúria do animal e aflorar os nervos de um espectador já demasiadamente aflito.
Um ótimo exemplar de filme em seu gênero, Um Lugar Silencioso galga posições importantes em uma outra área que não está diretamente ligada a sua realização. Não necessitando dessa abordagem para funcionar, mas a obra de John Krasinski abre espaço para suas duas personagens femininas assumirem um bem-vindo protagonismo no momento derradeiro da trama. Uma decisão que engrandece o projeto, adicionando mais um aspecto entre tantos outros méritos que ele já havia conquistado até então.
NOTA: 5/5