Isolados no interior dos EUA, numa região sem o mínimo de infraestrutura básica, as famílias vizinhas McAllan e Jackson vivem do parco sustento que obtêm da terra. Uma sobrevivência dificultada pelas temperanças da natureza que insistem em maltratar qualquer tentativa de cultivo de seus habitantes. Uma situação complicada para os McAllan que até pouco tempo atrás viviam na área urbana de Mississipi e mudaram para a zona rural a desejo de Henry (Jason Clarke, de Evereste e Planeta dos Macacos: O Conflito). Para os Jackson, capitaneados por Hap (Rob Morgan, das séries originais Netflix Stranger Things e Demolidor), a vida ainda lhes impunham as intransponíveis barreiras do racismo.
Hap e Florence (interpretada pela cantora e compositora Mary J. Blige) contavam com a ajuda dos filhos nos trabalhos de campo num terreno onde pairavam dúvidas sobre a titularidade efetiva deles sobre a propriedade. Tinham uma vida livre e desimpedida, mas mesmo assim estavam sujeitos às boas vontades dos McAllan. A escravidão já estava há muito abolida do território americano, mas os negros continuavam sendo mal vistos pela sociedade (especialmente num estado conservador como o Mississipi). Não era raro serem submetidos a entrar ou sair de locais públicos pela porta dos fundos ou obrigados a se sentarem nos últimos bancos dos ônibus, num espaço especialmente reservado para eles.
A relação dos Jackson com os McAllan não era assim tão complicada. Florence era, muitas vezes, útil a Laura McAllan (Carey Mulligan, de Não Me Abandone Jamais e As Sufragistas) para tratar das enfermidades de suas filhas. Um médico profissional estava fora de cogitação com os lamaçais formados nas estradas sempre que intensas chuvas castigavam a região. Laura não tinha nada dos conhecimentos práticos de Florence nesses assuntos. A bondade de Henry com a família negra vizinha também era comedida. Havia uma preocupação sim, mas esse auxílio não era facilitado quando os Jackson passavam por sérias dificuldades. Uma atitude que em nada poderia ser comparado ao racismo puro, declarado e explícito de Pappy McAllan (Jonathan Banks, de Gremlins e da série Better Call Saul) que fazia questão de o reafirmar todas e quantas vezes fosse necessário.
Para não beneficiar essa ou aquela família, Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi cede espaço para que vários personagens se alternem na narração de sua história (algo talvez herdado do livro de Hillary Jordan do qual é adaptado) para que assim tenhamos acesso a vários pontos de vista, especialmente quando os seus dramas são apresentados para construir aquela que podemos considerar a sua trama principal. Uma ampliação de horizontes mais do que bem-vinda principalmente em relação ao assunto com o qual quer lidar. Ao menos na concepção do segundo longa dirigido por Dee Rees (também diretora de Pariah) há uma igualdade entre as famílias.
De forma bem mais comedida, o roteiro insere os dramas de guerra vividos por um membro de cada família. Jamie McAllan (Garret Hedlund, de Tróia e Invencível), irmão de Henry, foi piloto de bombardeio na Segunda Guerra Mundial. E não é só porque ele esteve longe das linhas de combate em terra que Jamie não tenha vivenciado as suas próprias experiências traumáticas (algo sempre questionado por Pappy). Com a cor de pele repetidas vezes discriminada nos EUA, o exército não via problema nenhum em alistar Ronsel Jackson (Jason Mitchell, de Straight Outta Compton: A História de N.W.A., Kong: A Ilha da Caveira e Detroit em Rebelião), filho mais velho de Hap, num agrupamento de tanques militares comandado e preenchido por soldados negros.
O retorno de Jamie e Ronsel aos seios de suas respectivas famílias é o ingrediente final com o qual Mudbound tempera a sua história final. Longe das sangrentas batalhas da guerra, os dois rapazes sentem imensa dificuldade em se reintegrar à vida rural difícil e pacata de seus familiares. Na maioria das vezes, o consolo temporário é obtido com o (ab)uso da bebida alcoólica, dos momentos de solidão ou de descontração que um encontra no outro. Uma amizade inesperada que surge para desespero e desgosto de Pappy. Voltar ao Mississipi é especialmente doloroso para Ronsel, pois ele torna a lidar com uma discriminação que não experimentava em terras europeias. Jamais ele conseguiria na América o que conseguiu na Bélgica naqueles anos: um filho com uma mulher loira.
A amizade de Jamie e Ronsel provoca um ato covarde e desumano de racismo que culmina no espancamento de Ronsel por membros do Klu Klax Klan que agem, obviamente, sob orientação de Pappy. Com esse desfecho aterrorizante que Mudbound – Lágrimas de Mississipi faz a sua amarra narrativa e onde o espectador passa a compreender todo o contexto apresentado em suas cenas iniciais. Uma espécie de dèja vu intencionalmente provocado, tamanho a imersão que o filme provoca. Esse magnetismo é obtido, claro, graças à competência de um elenco de talento homogêneo e de uma trilha sonora assinada por Tamar-Kali em seu primeiro trabalho como compositor para o cinema e toda trabalhada em instrumentos de cordas, que estabelecem na medida certa o clima melancólico e sufocante de seu drama.
NOTA: 5/5