A menção aos últimos dias de um príncipe e sua princesa sem voz nos leva a entender que o mais recente trabalho de Guillermo del Toro (diretor de filmes como O Labirinto do Fauno e Círculo de Fogo) será uma fábula, uma alegoria fantástica. Ao decorrer da história, percebemos que o interesse do governo americano em uma criatura amazônica está vinculado à corrida espacial que os EUA concorriam (e perdiam) com a União Soviética. O aprisionamento e o estudo desse exótico ser, meio humano meio anfíbio, poderiam ajudar no desenvolvimento de tecnologias que permitissem uma estadia mais prolongada dos astronautas no espaço sideral. Era a trama fantasiosa se aproximando do mundo real.
Num dos laboratórios onde esse experimento era conduzido trabalhava Elisa (Sally Hawkins, de Blue Jasmine, As Aventuras de Paddington e Paddington 2). Faxineira e deficiente afônica, ela trabalhava no período noturno no local e tinha em Zelda (Octavia Spencer, de Histórias Cruzadas, Fruitvale Station – A Última Parada e Estrelas Além do Tempo) a sua única amiga no trabalho. O emprego era parte de um dia-a-dia que Elisa vivia sem alteração alguma já há algum bom tempo. Ao retratar esses afazeres costumeiros, o filme também estabelece os principais cenários pelos quais a protagonista frequenta e nos quais a história se desenrolará. Outro fator importante em A Forma da Água que pode ser notado nesses momentos iniciais é o investimento da direção de arte na predominância dos tons de verde em todo o filme, oriundo do tom esverdeado da água que abrigava a criatura.
A rotina de Elisa se altera drasticamente ao entrar em contato com o animal-cobaia (vivido por Doug Jones, parceiro recorrente na filmografia de Del Toro e da série Star Trek: Discovery). Uma relação que se estreita ainda mais quando ela o vê sendo torturado por Richard Strickland (Michael Shannon, de Batman vs Superman: A Origem da Justiça e do ainda inédito 12 Heróis), funcionário do governo responsável por comandar as pesquisas com requintes de crueldade. Ao testemunhar a forma injusta com que a criatura é tratada, Elisa planeja uma forma de retirá-la do seu cativeiro com a ajuda de Giles (Richard Jenkins, de Queime Depois de Ler e Deixe-me Entrar), seu amigo e artista plástico com quem dividia o apartamento. Forças soviéticas, por meio do agente infiltrado Robert Hoffstetler (Michael Stuhlbarg, de Me Chame Pelo Seu Nome e The Post: A Guerra Secreta) também planejavam, a sua maneira, roubar o monstro da Amazônia.
A Forma da Água tem a estrutura clássica da história de amores impossíveis. Uma versão menos romantizada de A Bela e a Fera já que utiliza de uma violência pontual e repentina com o claro intuito de chocar os corações mais incautos, já que não há valor narrativo para a forma como ela é empregada por Guillermo del Toro ou até mesmo a nudez. A “estrutura clássica” também se estende aos personagens que, do início ao fim, não extrapolam os limites de seus espectros de bondade/maldade (com a exceção do personagem de Doug Jones que se encaixa no “selvagem”).
Complicado definir onde A Forma da Água quer se inserir como história. Tem o ser fantástico, a narração em off (e toda a aura de contos de fada que já vem embutida nessa ferramenta narrativa), mas não é propriamente uma história de fantasia. Acrescenta elementos reais da história humana (como a Guerra Fria), mas em certos momentos abusa da suspensão de crença para que a trama efetivamente funcione. Um mega ponto de interrogação surge, por exemplo, quando os dois amantes conseguem inundar um banheiro, algo fisicamente impossível pelo modo como o fizeram. Importância social? O racismo, o preconceito contra a opção sexual são mencionados sem ter um único argumento desenvolvido. Nem a pouca difundida discussão do “o que é sagrado?” – que reúne toda a presunção possível humana ao determinar que a suposta existência de um criador é feita à sua imagem e semelhança – não ganha mais do que dois minutos em tela.
Essa indefinição temática é o que mais incomoda em A Forma da Água. Uma indecisão de onde o filme quer realmente se firmar: o mundo fantástico ou o mundo real? Sem conseguir estabelecer uma premissa convincente, ainda há um roteiro que levanta várias bandeiras, mas não oferece (ou simplesmente não quer abrir) espaço para debater os próprios assuntos que propõe. Assim, somos apresentados a um filme que não traz nada de substancial ao espectador e cuja história acaba se perdendo em suas próprias ambições e indefinições.
NOTA: 3/5