Tudo por um real
Acompanhava o irmão mais velho, Pedro, catando lixo que podia ser vendido, como latinhas de alumínio, papelão, garrafas ou aproveitado alguns achados para eles mesmos. Os tênis que usava vinham daí. Os pés eram um tanto menores, mas o que importava? Os tênis eram bonitos e quase novos. Não atinava o porquê de seu antigo dono tê-los descartado. Bom para ele, que agora usava tênis de marca.
Pedro estacionou a carroça ao lado dos contêineres daquele condomínio residencial e mergulhando neles vasculhava-os um a um. Ele, por ser ainda muito pequeno, seguia as orientações do irmão mais velho, para que ficasse quieto, pois, normalmente, mais atrapalhava do que ajudava na garimpagem do lixo.
Enquanto aguardava o retorno de Pedro, avistou um menino de pele muito alva, mais ou menos de sua idade, de mãos dadas com uma jovem negra. O branquelinho mostrava a ela, entusiasmado, uma moeda de um real, e contava tê-la ganhado da fada do dente, por ter deixado o pai extraí-lo sem chorar.
– Você não chorou nem um tantinho assim?
– Só quatro lágrimas. Acho que esse pouquinho a fada do dente deixa passar.
– E onde a fada do dente deixou essa moeda?
– Debaixo do meu travesseiro. Assim que acordei, levantei ele e a moeda estava lá.
– Acho que a fada deu essa moeda por você também ser um bom menino e ter escovado bem os seus dentes. Eles são tão branquinhos…
José, ou melhor, Zezinho – assim era conhecido o irmão mais novo de Pedro –maravilhou-se com aquele rápido diálogo. Lembrou-se de uma história sobre essa tal fada, quando umas moças vestidas de branco passaram lá na invasão onde ele morava, ensinando como cuidar dos dentes. Então era verdade! E o bom era que ele tinha um dente amolecendo.
– Pedro, esse dente aqui ó, tá mole.
– Fica balançando pra frente e pra trás, que em casa eu arranco.
Passou o resto do dia com o polegar e o indicador na boca balançando o dente, já pensando na moeda que ganharia. Compraria chicletes na vendinha do seu Manoel. Cultivava verdadeira idolatria por chicletes!
Naquele dia, as incursões de Pedro pelo garimpo urbano pareciam estar rendendo uma boa colheita. A carroça estava abarrotada de latinhas. Zezinho as achatava com uma pedra, de modo a que coubessem mais unidades em cada um dos sacos de estopa levados na carroça. Ele, mais do que nunca, queria ser um bom menino, afinal, a moeda só viria se ele se comportasse bem e ajudasse o irmão.
Final da tarde, depois de um longo dia de peregrinações, a dupla de irmãos retornava ao lar: uma casa bem humilde, com muito por melhorar, algo que lentamente ocorria, graças ao esforço de Pedro e da mãe, doméstica.
Rápido como quem furta, Zezinho foi se olhar no caco de espelho, também este, um dos achados do irmão em um de seus muitos dias de catação de lixo. Até então, Zezinho não ligava muito para seus dentes e vários deles apresentavam pontinhos escurecidos. “Vou escovar bem escovadinho de agora pra frente”, matutou ele.
Depois do jantar, Zezinho nem esperou pela costumeira bronca da mãe para que fosse se lavar. Naquele calorão, o banho de cuia até refrescava. E um bom menino toma banho todo dia.
– Mãe, a pasta de dente, onde que tá?
– Deixa a mãe descansar, moleque.
– Quero escovar os dentes.
– Toma aqui. Depois me deixa ver aquele dente.
Zezinho caprichou na escovação. Lembrava-se de algumas das orientações daquelas moças: escovar cada um dos dentes pra cima e pra baixo, em cima, na frente e atrás. Não deixar nenhum sem limpar. Depois, a língua. Quase vomitou nessa parte. Dava uma sensação muito ruim. Na sequência, foi até Pedro, que pôs os dedos na boca do irmão e constatou que o dente ainda precisava amolecer mais.
Como todos dormiam cedo, poucos minutos depois reinava o silêncio naquela casa. Barulho só os da rua. Aqui e acolá algumas vozes, gritos, sons que lembravam disparos, sirenes e o ladrar de cães: a sinfonia noturna a lhes ninar.
Antes do sol se mostrar, já estavam todos despertos para mais um dia de muito trabalho. O desjejum, assim como as refeições ali, era frugal. Naquela manhã havia pão e café com leite. Nada mais.
– Mãe, tô amolecendo meu dente.
– Me deixa ver. Amolece mais pra não doer quando arrancar. Agora já vou. Juízo, meus filhos!
– Tchau, mãe. Bom trabalho.
A mãe caminharia boa distância até a parada de ônibus. Com muita sorte poderia se sentar para vencer os quase cinquenta quilômetros que separavam sua casa da casa em que trabalhava.
Minutos depois, os irmãos, mais uma vez, iniciariam a caminhada. O itinerário diferia daquele percorrido no dia anterior. Pedro, a pequena carroça que ele mesmo puxava ou empurrava e Zezinho com mão na boca para amolecer o dente.
– Vai viver com a mão na boca o tempo todo agora?
– Ué, você e mamãe ‘falou’ que o dente ainda não tá mole! Tô amolecendo…
– E pra que tanta agonia pra arrancar um dente?
– Pra ganhar um real da fada do dente.
Pedro achou graça, contudo, tinha muito que fazer. Com mais a catação daquele dia, teria juntado boa quantidade para levar à cooperativa de catadores de recicláveis.
No mesmo ritmo e rotina do dia anterior, à noitinha os três estavam em casa. Repetiu-se o jantar, o cansaço, o sono e o despertar para mais um dia. A diferença é que depois da saída da mãe, os irmãos se encaminharam à cooperativa.
Pesada toda a carga, Pedro conseguiu arrecadar exatos vinte e quatro reais e setenta e cinco centavos. Costumava entregar tudo para a mãe, mas hoje queria lhe fazer uma surpresa. Foi até a vendinha de seu Manoel. Comprou farinha, sardinha em lata e um pacotinho de suco sabor abacaxi. Ao ver o olhar fixo do caçula para os chicletes, concordou em lhe comprar um.
– Zezinho, hoje nós vamos fazer uma surpresa pra mãe. Você me ajuda a arrumar a casa?
– É aniversário da mãe?
– Não. Já passou, mas no dia eu não tinha nenhum dinheiro.
– Tá bom, ajudo. Posso comer meu chiclete?
– Pode.
De tanto bulir o dente, enquanto mascava o chiclete, ele caiu. Zezinho pulou de alegria. Mostrava a Pedro, orgulhosamente, o dente na palma da mão.
– Vou pôr debaixo do travesseiro para ganhar um real.
– Você acredita mesmo nessa baboseira de fada do dente?
– Claro. Eu até vi um menino que ganhou uma moeda!
– ‘Tu é’ besta mesmo.
Em casa, Pedro e Zezinho se puseram a arrumar tudo. Varreram dentro e ao redor da casa. Lavaram e guardaram a louça. No almoço, comeram a sobra dos pães que seria o jantar daquele dia. Para o jantar, farofa de sardinha, arroz e suco de abacaxi.
A mãe chegava de mais um dia de labuta. Vinha esgotada, pois se na ida havia uma chance de se sentar durante o trajeto, no retorno isso era impossível. Juntava o cansaço do trabalho e a longa viagem de pé no ônibus.
Ao se aproximar da casa, percebeu haver algo diferente. Além de não encontrar as costumeiras folhas secas ao redor da casa, o cheiro de comida exalava forte. Ao entrar, o pesado fardo que carregava se anuviou a ponto de fazê-la sorrir. Os filhos a esperavam de banho tomado e com o jantar feito.
– Gostou, mãe?
– Demais!
– É uma surpresa pra você.
Emocionada, a mãe abraçou os filhos. Vocês são uns meninos de ouro!
– Ó, mãe, meu dente.
– Foi Pedro que arrancou?
– Não. Caiu sozinho. Nem doeu.
– Que bom.
A imagem do menino de pele alva com aquela reluzente moeda não lhe saía do pensamento. Seus familiares ainda cultivavam resquícios do bem-estar daquela noite, mas já pensavam em se recolher para recarregar as forças necessárias a mais um dia estafante. Pedro e a mãe pouca atenção conferiram à ingênua expectativa de Zezinho. Algum deles se lembrará de trocar o dente pela moeda enquanto o pequeno dormir?
Zezinho olhava o dente na palma da mão; depositou-o sob o travesseiro e sonhou com a possibilidade de a vida lhe sorrir, presenteando-lhe com o vil metal.
Despertou mais cedo do que normalmente o fazia. Ergueu o travesseiro, com o coração acelerado. O que viu marcou-o pelo resto da vida, moldou seu caráter, incentivou-o a acreditar ou não em seus sonhos, no tratamento igualitário entre pessoas, sem distinções pela cor da pele ou condição social. Fez com que optasse por lutar ou desistir de enfrentar os obstáculos da vida, permitiu-lhe condições de refletir para escolher se se deixaria seduzir ou não pelo mundo do crime, oceano que circunda o ambiente em que vive.
O brilho de uma moeda no túnel da vida. Lá na frente uma bifurcação: um lado o conduz para caminhos iluminados o suficiente para ele ver o que tem sob os pés e diante dos olhos; o outro é um tanto sombreado, nebuloso. O campo de visão não favorece distinguir os defeitos na pavimentação. Só se sabe ao pisá-los.
Qual caminho Zezinho escolherá? A resposta depende daquela moeda. Encontrá-la ou não financiará o futuro daquela criança. Cara ou coroa? Tudo isso a um real.
Autor: Evandro Valentim de Melo