Sorria para todo mundo. Menos para si mesma. Essa era a rotina de Maria.
Começara como um emprego. Cuidar de criança durante a semana, dar comida, dormir… nada que não tivesse feito com suas irmãs na adolescência ou com a filha durante sua infância. Saía uma graninha, dava pra pagar as contas e ainda comprar um presentinho de natal pra filha.
Não podia fazer de graça. Já não tinha tempo para a família, se fosse voluntariar, não sobraria espaço para a vida pessoal, mas durante um tempo ela manteve em mente essa ideia, considerando deixar um ou dois dias por mês em nome das crianças carentes as quais, possivelmente) cuidaria. Abandonou, e acabou (como sabemos) ingressando na creche.
Entra 5, sai 22. Reclamava muito em casa- “É escravidão José… Escravidão!”- e o corpo já não aguentava sequer parar em pé; ou se mexia ou cairia no chão. A coxa gritava, a panturrilha implodia, a cabeça doía da gritaria, se direcionava ao tanque para uma lavagem do avental (sujo de algo verde- seria meleca ou a salada?), os braços fraquejavam de tanto colo dado. “Calma meu amor, é só o 4o dia. Quando der 1 mês, você pede as contas e procura algo melhor”. Bom mesmo, pois não aguentava um segundo sequer naquele inferno infantil.
Inferno sim, pois as crianças eram demoninhos vivos. Puxavam cabelo, roupa, avental, mijavam onde não podiam, brincava quando não devia, só obedeciam as “tias” mais veteranas. Nas horas de comer, comiam como esfomeadas, nas de dormir, parecia que nunca haviam visto camas na vida.
Na 2a semana, os ânimos abaixaram. Ou seria Maria acostumando-se com o ritmo dos querubins? De qualquer forma, agora tentava, durante os momentos de mais calma, conversar com as crianças: Samuel, que amava o Ben10; a Juliana, fã das MonsterHigh; a Tati, aniversariante que ganhara um patinete; João que queria muito conhecer papai noel. Repentinamente, eles se tornaram mais reais aos olhos de Maria. Acostumara-se com os chutes da canela, quase quedas durante brincadeiras e aprendera como convencer as crianças a ouvirem-na. Identificara os atentados e descobrira como lidar com os tais.
Na 3a, houve visita dos responsáveis e ficara sabendo das histórias. O pai suicida de tal, a mãe abusada desta, o abandono daquela, as disputas judiciárias da guarda… Neste dia, chegara em casa chorando. “É abuso, José!” “Mas não melhorou já?” “Com elas! É com elas!”. Já não era um emprego, era uma missão. Não vivia mais uma vida, tinha 207 para cuidar. Maria ficara grávida somente uma vez, mas sua preocupação com as crianças a tornou mãe virgem de todas aquelas.
Não se demitiu daquele inferno ao final da 4a semana, e nem da 5a, 6a… e era inferno sim, mas o Diabo vinha no fim da tarde e só saia no início da manhã. Seus anjinhos, tão puros, deviam ser intocáveis; mas não eram. Sua realidade não só as tocava como as maltratava. Elas não só sofriam do abuso doméstico, mas também o abuso da falta de amor recebida. E infelizmente, a creche por si só, com as tias e a estrutura não bastava para amar aquelas almas.
Depois de tempos ali, entendera o verdadeiro problema. A caridade externa era feita tal como um dízimo: de forma forçada e material. Mas só vai ao Reino dos Céus aquele ator, não espectador. Do que adiantava tanto presente sem alguém para entregar? Do que adiantava sua preocupação com seus anjos se nada mudava na vida deles? Ela dava seu amor e isso mudava tudo, mas não as tristes realidades.
Reza a lenda que toda vez que chegam presentes na creche, Maria abre cada um e tenta fazer seus bebês ganharem o desejado, mesmo sem perguntar o desejo, num instinto de mãe. Ela fala dessa realidade a todos os vistitantes, tentando assim convencê-los a dar algo maior em relação ao dízimo caridoso: o amor.
Nessas tentativas, Maria mudou-se por completo. A maternidade tornara-a uma mulher otimista e calma. Maria agora tinha mais compaixão. Seus ossos se fortaleceram com a alegria causada nas crianças e os olharem pueris criaram uma fortaleza em sua saúde, de tal como a ela nunca mais ficar doente. Maria agora sorria não só por si, mas por todos (e cada um) de seus pequenos filhos.